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quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Como a obra de Tim Ingold desdobra a ontologia de Deleuze & Guattari, por Nelson Job

 


este artigo, vamos apresentar a antropologia de Tim Ingold naquilo em que ela desdobra a ontologia de Deleuze e Guattari. Sabemos o quanto é problemático chamarmos a obra de Deleuze e Guattari de “ontologia” e aqui quero deixar claro de saída que enquanto “ontologia”, para além do “estudo do ser”, estou operando de acordo com os estoicos e substituindo, por assim dizer, o “ser” pelo devir.

Dito isso, cabe uma pequena apresentação de Tim Ingold: ele é um antropólogo inglês nascido em 1948, filho de um  importante especialista em fungos, Cecil Ingold. Desde o início da sua obra, seguindo os Passos de um autor que o influenciou, Gregory Bateson, Ingold sempre foi um corpo estranho na antropologia, com grande parte do meio antropológico tendo dificuldade em entender sua itinerância. Seu trabalho etnográfico inicial foi com os skolts, indígenas da Finlândia. A partir de 1999, Ingold começou a dar aulas na Universidade de Aberdeen, Escócia, onde finalmente encontrou a liberdade para ministrar aulas da maneira que ele pensava ser mais adequada, por exemplo: seus alunos ficam descalços nas aulas para entrar mais em contato com o ambiente.

Ingold os leva à praia para soltar pipa, e com isso, perceber a imanência ao longo das linhas que juntam areia, aluno, pipa e vento, chegando até a fazer balaios, para trabalhar a univocidade ao longo de conteúdo e expressão. A partir da publicação do seu livro de 2000, The Perception of environment, Ingold conseguiu um reconhecimento mundial maior da sua obra – que também começava a ter uma influência crescente de Deleuze e Guattari, sobretudo de Mil Platôs – tendo inclusive vindo algumas vezes ao Brasil e finalmente, tendo alguns de seus livros traduzidos aqui pelas editora Vozes, como o Estar Vivo, entre outros. Ingold é um crítico costumeiro da obra de Lévi-Strauss e Bruno Latour, como veremos adiante. A antropologia de Ingold, segundo o próprio, é anti-disciplinar, no sentido que ele é crítico ao termo interdisciplinar, fazendo com que sua antropologia conflua com a arte, educação e psicologia, sendo ela própria uma derivação filosófica. Além disso, em um dos seus livros mais recentes Anthopology: why it matters, ele acrescenta que antropologia é “filosofia com gente dentro”.

Tendo apresentado Ingold, o que nos co-move ao realizar o presente artigo é o fato que, a despeito da enorme influência da filosofia de Deleuze e Guattari, ao que me parece, ninguém, até então, conseguiu avançar em sua ontologia. O que apreendemos usualmente são usos mais ou menos originais de seus conceitos, colocando-os em campos até então inéditos e avançando na compreensão da bibliografia presente em seus textos. Com Tim Ingold, finalmente, me parece que alguém consegue ir além.

Em primeiro lugar, a filosofia de Deleuze e Guattari é entendida como uma filosofia do “entre”. O que Ingold, em vários momentos da sua obra propõe, é que no lugar do entre se conceitue o ao longo de. O problema do “entre”, para Ingold, é que ele exclui parte do ambiente, e o ao longo de inclui tudo, toda a vida inerente ao processo. É preciso entender aqui que a ontologia de Deleuze e Guattari seria algo como ao longo de. A ideia aqui é apenas explicitar isso. No entanto, o problema do entre ressoa em outros autores, como Bruno Latour e sua famosa Teoria do Ator-Rede. A Teoria do Ator-Rede, a despeito das inúmeras emendas que Latour aplicou a ela ao longo dos tempos, incluindo renegar esse nome, essa teoria separa os atores da rede, realizando mais um dualismo. Em um divertido texto de Estar Vivo, Ingold coloca uma aranha pra conversar com uma formiga (ANT: Actor-Network Theory) afirmando que a aranha, como tece a sua teia a partir de si, ela é de fato imanente a sua “rede”, que Ingold substitui por malha. A crítica de Ingold à ideia de rede, é que esta só se preocupa com seus nós e não com o que acontece ao longo deles!

O questão do ao longo de, nos levou inevitavelmente à questão das malhas em Ingold, inspirado no filósofo Henri Lefebvre. As malhas emergem aqui, pelo que foi dito anteriormente e por ser uma imagem mais eficaz à imanência. E é aqui que Ingold traz mais uma importante contribuição à obra de Deleuze e Guattari: é em relação à questão das linhas, cujo emaranhado vai constituir a malha, da qual falamos anteriormente. Ingold vai partir do uso que Deleuze e Guattari fazem em Mil Platôs das linhas do pintor Paul Klee, que segundo o próprio, suas linhas, que são vivas, são “o ponto que saíram para passear”. Ingold vai recuperar a ideia de Deleuze e Guattari que seguir as linhas é diferente de “imitar”, ou seja, é muito mais uma questão de itinerância do que de “interação”, posto o dinamismo no processo que Ingold evoca aqui. Voltaremos à questão do problema da interação mais tarde. Podemos dizer que a antropologia de Ingold é de itinerâncias das linhas e seus emaranhados, tendo ele dedicado dois livros ao tema das linhas – Lines e The Life of Lines –, além delas aparecerem sempre ao longo de sua obra. Esses emaranhados ressoam com a ecceidade que Deleuze e Guattari recuperam de Duns Scot.

Ainda com Klee, Ingold o cita quando este diz que as formas de gênese e crescimento das formas são mais importantes que as formas elas mesmas. E ainda: “a arte não reproduz o visível, mas torna visível”. Aqui fica possível perceber as ressonâncias com a filosofia de Bergson, onde ele diz em seu texto A percepção da mudança, ser a função do artista é nos fazer ver o que até então para nós era invisível. Ingold diz em uma entrevista que leu tanto Bergson em sua juventude que hoje ele não sabe se teve uma nova ideia ou se está simplesmente pensando como Bergson! Em um sentido semelhante a Klee, Kandinsky, tanto em suas pinturas como em seus escritos, também vão ser importantes para Ingold.

E as linhas nos remetem ao rizoma, termo, aliás retirado por Deleuze e Guattari do livro Naven, de Gregory Bateson. Essa é uma das críticas mais interessantes de Ingold. Ele vai dizer que o empréstimo do conceito feito na biologia é indevido! Explicando: o que é, afinal, o rizoma na botânica? De fato, o rizoma é um entrelaçamento de raízes. No entanto, ele é uma espécie de clonagem da natureza. Um rizoma reproduz-se, criando uma rede de semelhanças. E pior: se uma parte do rizoma é atacada, toda a rede se desmonta! A bananeira é um típico rizoma. E o maior problema das bananeiras, o que se pegar em uma alastra para todo o rizoma são… os fungos! Curiosamente, é justamente no micélio fúngico em que Ingold vai encontrar o melhor exemplo na biologia do rizoma filosófico. Baseado no biólogo Alan Rayner, Ingold diz que o micélio fúngico  – o que seria a “malha” de fungos – possuem as características que ressoam de forma mais precisa com o conceito filosófico de rizoma, pois o micélio fúngico não possui centro. Algumas outras características peculiares que ajudam a ilustrar os fungos enquanto rizomáticos são que eles transmitem informações ao longo da floresta, sendo considerado hoje em dia até mesmo o cérebro do floresta; se parte do micélio for destruído, diferente dos rizomas como os da bananeira, ele se reconstitui em grande parte das ocorrências, dado ao seu funcionamento descentrado! Finalmente, o fungo Armillaria, em Oregon, EUA,  é considerado o maior ser vivo da Terra! Há uma espécie de “revolução fúngica” acontecendo hoje na biologia, graças aos estudos de vários autores, entre eles, Paul Stamets.

É preciso deixar claro que o conceito filosófico de Deleuze e Guattari de rizoma, enquanto conceituação filosófica, está intacto. A crítica aqui é da imagem tomada de empréstimo da botânica, que foi, por assim dizer, infeliz. O estudo dos fungos gera uma compreensão mais eficaz e precisa desse conceito filosófico.

Uma outra problematização de Ingold é em relação aos conceitos de liso e estriado em Mil Platôs. Para Deleuze e Guattari, há uma correspondência entre a distinção háptica (tátil)/óptica com o liso/estriado. Para Ingold, a distinção do tátil e do ótico se dá apenas no estriado, ou seja, o agricultor, por mais que aproxime a visão da terra e o pegar na enxada e o pedreiro gótico opere no nível do chão, eles não são nômades! Dito em outras palavras, o fato de tátil e ótico serem transversais no agricultor e no pedreiro, não necessariamente ressoa em uma transversalidade entre o liso e o estriado. Essa transversalidade se opera apenas no estriado. Isso vai ser importante para Ingold, pois ele vai tecer toda uma conceituação do que é atmosfera, que ele desenvolve a partir do filósofo Gernot Böhme, em detrimento da “paisagem”, no sentido que “paisagem” é algo intocado e atmosfera é eminentemente relacional.

Um outro detalhe, de âmbito mais geral, seria a questão da ontologia e epistemologia, outro item presente ao longo da obra de Ingold. Em suas provocações da ordem de uma anti-disciplina, ao seguir linhas imanentes e vivas, Ingold critica essa separação e diz que não dá para pensar uma sem a outra. Mais uma vez, se Deleuze e Guattari ainda falam eventualmente em “ontologia”, sua obra é exemplo de imanência ao longo de ontologia e epistemologia, ainda que isso não esteja explícito. Se formos, de forma consistente, partir de uma imanência, é preciso apreender a imanência ao longo de epistemologia e ontologia, ou seja, sem mais o dualismo de ser e pensar. A partir de uma imanência, “ser” se converteria em devir, como iniciamos este artigo e “pensar” se converteria em saber, ou melhor, “conhecimento” se converte em sabedoria. Esse é o tema do livro Anthropology and/as education de Ingold, que orbita em torno da ideia de que educação, no sentido ingoldiano em que ela ressoa com a antropologia, está muito mais ligada à atenção do que à “transmissão”! A atenção aqui não é um processo cognitivo e sim, ecológico, no sentido de juntar (togethering). Esse “juntar” é, para Ingold, o que faz a diferença da interação (que nos referimos anteriormente) para a correspondência, tema do seu novo livro. A “interação” é uma alternância de ações e a correspondência é o  juntar. Ingold dá o exemplo do jogo de xadrez. Interação seria a alternância individual de resposta ao movimento do outro. Correspondência, por sua vez, seria a itinerância de ambos no amor pelo xadrez. Isso culmina em uma crítica de Ingold ao conceito de “alteridade”. Não seria uma questão do ‘outro”, mas de, mais uma vez, juntar. Nada mais spinozista e deleuziano. Não é uma questão de “eu e você”, mas de nós! E, quem sabe, nós não apenas no sentido da correspondência ao longo de sujeito e objeto, mas também dos nós que emaranham as linhas ingoldianas…

Nesse citado Correspondences, Ingold traz os desdobramentos de seu projeto Knowing from Inside, em que, entre outras propostas, ele é convidado por diversos artistas para comentar suas obras. Se Deleuze fez inúmeras contribuições ao conceituar a partir do cinema, das artes plásticas e da literatura, e Guattari escreve uma espécie de romance, Ritornelos,  baseado em suas memórias e até um roteiro para de filme de ficção científica, Uiq, em Correpondences, essa verve é tecida por Ingold junto aos artistas, cuja atmosfera permite que ele publique no livro alguns de seus poemas, além do fato dele tocar cielo.

Deleuze diz em seus cursos sobre Spinoza que o terceiro gênero do conhecimento conceituado pelo filósofo polidor de lentes, ou seja, a intuição, é “misteriosa”. Por sua vez, com Ingold, nesse seu Correspondences, apreendemos a intuição com uma maturidade rara nos pensadores “ocidentais” – observada em poucos, como Spinoza e Bergson -, evidenciando como ninguém a diferença entre conceituar “sobre” a imanência e conceituar na imanência!

 



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